Há na vida das Nações as horas positivas de construção, de afirmação de um sentido itinerário, assim como existem as horas negativas de destruição, de crítica demolidora e propositura formas de vida opostas à ordem vigente.
E há também a hora das angústias, como existem as horas de tempestade que assinalam as grandes transformações sociais e políticas. Hora da Enciclopédia e hora da Revolução, hora de Catilina e hora de César, hora de Marx e hora de Lênin.
Não erraremos, transcendendo do campo exclusivamente terreno das preocupações utilitárias ou mesmo idealistas para a esfera das cogitações do Espírito, dizendo que existe a hora de João Batista, a preceder a hora de Cristo.
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Mas existem as horas neutras, as horas cinzentas das indefinições melancólicas. São as horas das inapetências, as horas sem expressões de vontade e sem lampejos de inteligência.
Nessas horas, as Nações vegetam. Falta-lhes a sensibilidade, falta-lhes a capacidade de comoção. Desaparecem as revoltas vivificadoras, os entusiasmos expansivos, as determinações provindas do recesso da alma.
Tudo se apresenta, nessas fases mornas da História, numa horizontalidade monótona à qual se conformam as inteligências medíocres e diante de cujas perspectivas se exasperam, inutilmente, as mentalidades poderosas. Os fatos que então ocorrem e que atraem as atenções das turbas, são meras ondulações de superfície, que afinal coisa alguma significam.
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São as horas neutras. Horas sem caráter, sem título, sem assunto senão para as inteligências primárias e para os entendimentos infantis dos inpíduos vulgares.
Esses trechos da História assemelham-se aos filmes americanos, desprovidos de fundo e de grandeza, jogando com os mesmos elementos de todos os filmes antecedentes que fazem as delícias das platéias ignaras. Os temas de discussão ou a matéria quotidiana das conversas não passam de pequenos episódios que parecem grandes na ausência dos grandes assuntos ou das idéias cheias de força e de poder que se contrabatem nas horas vivas e agitadas.
Quando as Nações entram nesses períodos de passivo fatalismo, quando os inpíduos se contentam com a mesquinharia das intrigas que constituem os cartazes dos dias amorfos e descoloridos, a corrente dos acontecimentos é governada por leis mecânicas. Os homens e os povos não se movem por impulsos subjetivos, mas deixam-se conduzir impelidos pelo que vai acontecendo. E o que vai acontecendo não é determinado pela vontade e guiado pela inteligência, porque tudo se reduz ao rolar das pedras pela encosta, segundo as disposições e os relevos do terreno.
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E esse é o espetáculo dos dias presentes, quer na vida internacional, quer em nossa vida nacional. Abrimos os jornais e não vemos nenhum gesto humano de decisão, de definição tendente a impor um rumo novo, uma direção positiva ou mesmo negativa. A política em todos os países é o vaivém das competições partidárias vulgares. As ideologias que se apresentam não passam de semelhantes que concorrem umas com as outras. Todos os programas dos partidos se parecem. Fica-se na água choca de um socialismo que não tem coragem de chegar às últimas conseqüências ou de um liberalismo que procura conciliar-se com os termos de um autoritarismo de meia rédea. Fala-se em democracia, mas essa palavra perdeu o sentido. Fala-se em combater o comunismo (que, afinal, representa a única expressão de uma vontade determinada, embora hoje nada mais signifique do que o instrumento de um imperialismo asiático), mas ninguém sabe em nome de que combater esse comunismo.
E isso, para sermos otimistas, pondo em termos de aspirações ideológicas os movimentos superficiais da vida política dos povos. Porque, na realidade, o de que se cogita não são nomes de sistemas, nomes de regímens, nomes a rotular pensamentos definidos. O de que se cogita são nomes de pessoas. Os próprios partidos desaparecem para dar lugar a homens; mas esses homens não se revelam pelas idéias que expõem, e sim pelas aventuras que praticam para edificação dos espectadores de um teatro de títeres.
Temas que não passam de simples pormenores de caráter administrativo ou de soluções econômicas ganham a importância fundamental dos assuntos que a miopia das massas e a certeza das inteligências dos supostos líderes têm na conta de decisivos como interesse nacional ou humano. Invertem-se os valores. Tudo se confunde na névoa das inteligências amesquinhadas. Tudo se aplaina em perspectivas exasperantes de planície indefinível.
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É a hora neutra. A trágica hora neutra. Por detrás dela, talvez se prepare uma hora viva, uma hora ativa, uma hora de afirmação ou de negação, mas cheia daquele poder de transformação dos povos. Se ela existe por detrás da hora neutra, só os espíritos lúcidos e profundos podem percebê-la e anunciá-la.
Plínio Salgado
Nota:
[1] Extraído de: O Ritmo da História, Obras Completas, Vol. 16, pág. 67.